Estreou, na última sexta-feira (13), o especial “Poodle” do humorista, roteirista e ator mineiro Esse Menino, de 25 anos. O especial permanece em exibição online até dia 20 de agosto, com versões legendadas e em libras.
O comediante virou notícia dois meses atrás, viralizando na internet com a esquete de humor da vacina Pifaizer. O sucesso foi tamanho que virou freguês de comentários de jornalistas da Globonews, dado o intelecto que demonstra no vídeo que ironiza os crimes do governo de Jair Messias Bolsonaro, ao negar vacina pro seu povo. Como na ditadura militar, a ironia e a poesia vencia ali os calhordas. No riso. Através da arte, representou nossa indignação com a política atual brasileira, com o que fazemos de melhor na internet: rindo de nós mesmos.
Poodle
Como artista, Esse Menino nos indicava com sua esquete mais famosa o que poderíamos esperar no seu especial. Com “Poddle”, o comediante novamente passa longe de um humor estereotipado, do século XX, com sistematização de castas da sociedade (com ares colonialistas) e vai muito mais fundo, pra que o público tenha, ainda assim, um humor passível de riso, muitos risos. Com o seu humor, assim como no vídeo da Pifaizer, apresenta sua maior arma: a ironia, com seu humor ácido.
Dividido em atos, sua obra nos remete as Fases do Luto. A psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross (1926-2004) identificou, em seu trabalho, algumas fases, estados, reações psíquicas de pacientes terminais, ou seja, de pessoas que estavam lidando com a morte. Negação, revolta, barganha, depressão e aceitação são fases que muitos seres humanos passaram, ou podem vir a passar, quando encaram a morte. E esses estados psíquicos aliados à sensação de luto, ou de perda, possivelmente você já tenha experimentado na sua vida. Ou não. Estamos falando de privilégios? Também. Mas, de forma geral, de situações da vida que “fogem do nosso controle”, como vivências muito intensas, ou até mesmo acidentes e tragédias da vida em geral, por exemplo.
Quem nunca deu de cara com a morte? Eu mesmo sinto que já encontrei a morte algumas vezes - explicitamente, quando eu tentei suicídio na adolescência, em minha vã inocência gay, ao ser traído pelo cara que eu amava; ou um pouco mais tarde, também na adolescência, que tinha que ir namorar as escondidas da minha família com um cara, e numa dessas viagens, achei que fosse morrer na rodovia: eu na garupa de um veloz moto taxi, entre dois caminhões, foi minha condução para os nossos encontros “as escondidas”. Lembro em particular de sentir meu corpo se esvaindo de mim mesmo, dado a sensação de morte... aos poucos fui rezando e me despedindo de cada um da minha família...que eu amava, mesmo que eu precisasse namorar as escondidas. Também senti a morte, quando já adulto, descobri estar no quadro de aids, e sentir o peso em mim do clichê obvio estigmatizado e criminoso sobre o meu corpo: uma bixa vivendo com hiv.
O que hoje vivemos no ano de 2021, segundo ano pandêmico mundial, obrigou-nos a resetar e repensar em algum momento a nossa rotina. Tudo o que estava a nossa volta criou um outro peso. O que era cotidiano talvez também tenha se esvaído. Para as pessoas que hoje habitam neste planeta, pela primeira vez na nossa vida, nos conectamos por sentimentos que convergiam para algum lugar, mesmo que não sabíamos que lugar era esse.
Durante dias, entre março e abril de 2020, o planeta Terra entrou em suspensão e, quase que por um segundo, chegamos a questionar a própria dinâmica de nossas vidas. O vírus criou uma fissura. Pessoas perderam empregos e/ou não puderem exercer mais suas profissões. Só no Brasil, foram mais de 567.000 mil vidas perdidas e 4.350.000 milhões no mundo todo em decorrência da Covid-19. A crescente miséria, aumento de pessoas em situação de rua, a naturalização do fascismo contemporâneo, a intensificação do genocídio dos povos originários e os olhos mantidos à direita enquanto corpos negros e trans continuam caindo.
Todas essas sensações e estados pandêmicos, atuais ou não, que vivemos nos remete à perda, à morte ou ao luto, mais especificamente. E partindo desse sentimento atual, o comediante Esse Menino constrói sua obra dividida em atos no especial “Poodle”, que cheira a inspiração panfletária, mas artista que é, se apresenta entre conceitos, apuração e beleza estéticas, permeadas por muitas referências. Um grito de um artista independente, que explicita os poucos recursos, intensificando ainda mais a ironia e o humor. Longe de ser metalinguagem, o que vemos na tela é um grande stand up do performer.
Prazer, Esse Menino
Voltando à política, se a Constituição vigente de 1988 e o judiciário brasileiro fossem a lei neste país, nosso atual presidente eleito democraticamente não teria nem concorrido ao pleito, já que suas falas anteriores seriam criminosas perante o povo brasileiro, em especial para mulheres, negros, homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis, transsexuais, entre outras e outros.
Ufa... quanta gente! Percebeu ali a sigla LGBT+? Então, o especial “Poodle” pode ser visto como segmentado ao se comunicar diretamente com essa comunidade. E é disso que se trata o tempo inteiro, de um cartão de visitas do comediante Esse Menino ao público que agora pode conhecer seu trabalho e de onde fala. Mas, muito mais do que isso, entretém enquanto reflete e expõe de forma acessível uma das facetas de nós, homossex, bichas, da geração do humorista, que sentiu e sente no cotidiano as violências dessa sociedade ainda colonizadora e castradora.
O especial, que se apoia em 47 minutos no talento e trabalho do comediante, conta com uma equipe afinada, desde o material da divulgação, figurino e maquiagem. Traz, também, ótimas participações de artistas que intensificam ainda mais as referências e discursos do ator, como as cantoras Jup do Bairro e Duda Beat, e do roteirista Chico Felitti. Mas também conta com nomes como Bruxa Cósmica na coreografia e Fabio Lamounier e Rodrigo Ladeira na direção, com o duo criativo Doma. Os diretores se comunicam com a geração dos homens gays que, assim como eu e Esse Menino, fazemos parte, já há algum tempo, em especial com o projeto Chicos. A propósito, Chicos lançou-se como livro em 2016 através de um bem sucedido financiamento coletivo, forma independente de capitalizar artistas e projetos, assim como o roteirista e humorista mineiro aposta para o acesso e bilheteria do seu especial na internet.
O trabalho inicia-se com uma narração, na voz de Felitti, recurso chave para a construção de uma fábula. Por se tratar também de uma obra com ares de autobiografia, o recurso intensifica a acidez (e sinceridade) do trabalho ao, através da narração, distanciar e demarcar a fábula, a história, em uma obra que não se contenta apenas em ser um especial de stand up.
A reorganização da sociedade durante a pandemia, incluindo de vez a tecnologia como uma linguagem e meio de comunicação em todas as esferas e instituições da nossa sociedade, pode demarcar a virada simbólica do século XX para o século XXI. Mas, sobretudo, a internet e a cybercultura nos possibilitou um acesso crucial ao conhecimento e à história de nossos povos. E não apenas a controlada, antes, por poucas (grandes) mídias e pelo capital. Tribos e povos do mundo inteiro estão conectados simultaneamente, instantaneamente, observando, negando e denunciando um mundo obsoleto, violento, conservador, tradicional, antigo e colonial que vinha se arrastando em sangue há mais de XX séculos depois de Cristo.
A ousadia do especial de humor “Poodle” de Esse Menino é de uma necessidade crucial, não pelo fato de concordar ou não com sua fábula, e sim pela necessidade de encarar a refletir (com muito humor) sobre a nossa sociedade atual, afinal, o século XX acabou.
Bem-vindo ao século XXI.
“POODLE”
Especial com o humorista Esse Menino. Em exibição até 20 de Agosto. Ingressos a partir de R$ 20,00. Link de acesso: evoe.cc/essemenino.
Sobre o autor
Renan Bonito, de Jacarezinho/PR, 31 anos, é professor, artista, homossex, bicha (e não gay pet) brasileiro.
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