Os sólidos possuem formas de vibração coletiva no nível atômico, chamadas de fônons. Essas entidades, que se comportam como quase-partículas, possuem propriedades que são determinadas pelas simetrias da rede cristalina. Quando as simetrias de tipo especular são quebradas, os fônons passam a apresentar “quiralidade”. Isto é, deixam de poder ser sobrepostos às suas imagens no espelho. O termo deriva da palavra χείρ (pronuncia-se “queír”), que significa “mão” em grego antigo, pois as formas das mãos direita e esquerda não podem ser sobrepostas. Nessa situação, os fônons podem realizar movimentos circulares em um plano ou se propagar pelo material formando hélices.
Uma nova pesquisa realizada por equipe internacional liderada pelos professores Felix Hernandez, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo ( IF-USP), e Junichiro Kono, da Rice University, nos Estados Unidos, demonstrou, pela primeira vez, que é possível controlar as propriedades destes fônons quirais por meio de sua interação com elétrons em materiais topológicos. Os resultados foram publicados na revista Science Advances: “Observation of interplay between phonon chirality and electronic band topology”.
“Como os fônons determinam as propriedades elétricas, térmicas e ópticas dos materiais, a descoberta desse controle topológico abre um amplo leque de oportunidades para aplicações tecnológicas inovadoras”, diz Hernandez à Agência FAPESP.
O pesquisador afirma que fônons quirais constituem um tema de estudo muito novo e com grande atenção na atualidade. “Até recentemente, não era sequer sabido se excitações coletivas bosônicas, como os fônons, poderiam apresentar quiralidade. Por outro lado, a quiralidade de férmions é um assunto que já foi bastante estudado no contexto dos isolantes topológicos. Assim, existia uma clara necessidade de preencher tal vazio no entendimento da quiralidade das partículas e quase-partículas. E foi com esse foco que desenvolvemos nosso estudo”, conta.
Para não deixar os termos sem definição, vale lembrar que, segundo o modelo padrão, os férmions são as partículas que compõem a matéria, no sentido estrito. São constituídos por seis léptons (elétron, múon, tau, neutrino do elétron, neutrino do múon, neutrino do tau) e seis quarks (up, down, charm, strange, top, bottom). Já os bósons são as partículas responsáveis pela interação entre os férmions: fóton (interação eletromagnética), glúon (interação forte), W e Z (interação fraca) e bóson de Higgs (atribuição de massa aos férmions). A interação gravitacional, mediada pelo gráviton, não é contemplada pelo modelo padrão.
O primeiro trabalho teórico prevendo a existência de fônons quirais em materiais bidimensionais e a observação experimental deles ocorreram há menos de cinco anos. Estes estudos enfocaram primeiro modos de movimento circular confinados em um plano, e, posteriormente, desde o ano passado, investigaram também fônons que se propagam por sólidos em movimentos helicoidais. “Como os fônons quirais possuem momento angular, seu uso apresenta potencial para novos fenômenos como a geração de campos magnéticos internos ao material ou correntes de spin, com potenciais aplicações tecnológicas”, explica Hernandez.
No ano passado, Hernandez e Kono demonstraram que fônons quirais podem ser controlados por campos magnéticos externos. O estudo, publicado em Physical Review Letters, foi objeto de reportagem da Agência FAPESP.
Porém, o momento magnético encontrado nesse e em outros estudos foi muito maior do que o esperado. Novas previsões teóricas indicaram que as contribuições eletrônicas às propriedades magnéticas dos fônons poderiam ser responsáveis por esse grande aumento. E esse foi o “gancho” para a nova pesquisa, divulgada agora.
“Com o objetivo de testar esse encontro entre a quiralidade de bósons e a topologia de férmions, nossa equipe decidiu produzir e estudar filmes do isolante topológico cristalino Pb(1-x)Sn(x)Te. Este material apresenta uma transição de fase em função da concentração x, o que permitiu caracterizar amostras nas fases trivial e topológica e comparar os resultados”, informa Hernandez. Convém acrescentar que isolantes topológicos são materiais com configurações não triviais, que se comportam como isolantes em seu interior, mas conduzem eletricidade na superfície.
Para determinar a influência da interação entre quiralidade e topologia no momento magnético de fônons ópticos, os pesquisadores utilizaram espectroscopia em terahertz no domínio do tempo (THz-TDS), resolvida em polarização e em baixas temperaturas e campos magnéticos intensos, de até 30 teslas.
“Nossos resultados experimentais, publicados agora em Science Advances, podem ser resumidos em três asserções: obtivemos um alto grau de dicroísmo circular magnético na fase topológica em campos menores do que os necessários para obter o mesmo grau na fase trivial; o momento magnético é gigante na fase topológica, com um aumento de duas ordens de grandeza em comparação com a fase trivial; o deslocamento diamagnético também aumenta em uma ordem de grandeza”, relata Hernandez.
Assim, os dados demonstram que as propriedades magnéticas dos fônons quirais são amplamente aumentadas em materiais topológicos. E que esquemas para a manipulação de fônons com campos magnéticos, que podem aprimorar a condutividade térmica de dispositivos, são mais facilmente implementados nessa fase da matéria.
Os materiais utilizados no estudo foram “crescidos” no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Além das instituições de Hernandez e Kano, participaram do estudo diversos grupos dos Estados Unidos, para o desenvolvimento do modelo teórico, e do Japão, que se engajaram na fabricação da instrumentação de altos campos magnéticos.
O trabalho recebeu financiamento da FAPESP por meio dos Auxílios Regulares 2018/06142-5 e 2023/04245-0, conferidos a Hernandez. Detalhes da instrumentação utilizada no IFUSP para estudos de espectroscopia de fônons e outros fenômenos na faixa de terahertz podem ser encontrados em portal.if.usp.br/terahertz. E o artigo “Observation of interplay between phonon chirality and electronic band topology” pode ser acessado na íntegra em http://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adj4074.
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