O paradigma da infância não deveria ser a disciplina, mas a compreensão. O meio para alcançá-lo, portanto, não poderia, jamais, ser a violência, mas o diálogo. Isto é, para alcançar o paradigma, o fundamento é a paciência, a persistência e não a imposição. O resultado, certamente, seriam adultos mais equilibrados e mais motivados com a vida, tantas vezes longa e já cheia de desafios. Não sei de onde se tirou a ideia de que as crianças, para estarem preparadas para o mundo, precisam ser fortes e que "ser forte” consiste em aprender a sofrer. O mundo não é um lugar fácil exatamente porque é povoado por pessoas que tiveram uma infância assim. Esse é um filme que se repete há séculos, de adultos inconformados com a curiosidade e a energia das crianças e que, por isso, acham que seus papéis de “gestores do crescimento infantil” é o de fazerem com que elas abandonem esses sentimentos o mais rápido possível para que se tornem o modelo de adulto frustrado e incoerente que eles próprios são. Como se já não fosse o bastante.
Não é só a natureza que está acabando. O clima, os animais, o ar, os rios, os mares, mas também a infância. A energia proveniente da nossa angústia de adultos infelizes não tem limites. E nossa capacidade de perceber e girar essa chave é muito pequena. Às vezes conseguimos algo, mesmo a um custo enorme, e sempre sujeitos a novas recaídas. Somos o que o paradigma seguido por nossos pais determinou: interrompidos em nossa alegria de ver o mundo pela primeira vez como se toda manhã fosse folga da escola. E de rir de tudo e de brincar com tudo, e várias e intermináveis vezes, porque a repetição não é um enfado mas somente uma oportunidade a mais para rir.
A desatenção típica da criança que fomos vinha exatamente dessa nossa atenção em tudo, ao mesmo tempo, pois que tudo maravilhava. E quando, em meio a esse delírio caleidoscópico, havia um copo no meio, uma cadeira, um abajur, paciência. Como culpar-nos por ser o mundo tão interessante? Também nossa memória era distraída, porque o mais empolgante era obter e não reter: novas palavras, gestos, músicas, jogos, brincadeiras, piadas, além das paisagens de coisas e de pessoas, o tempo todo. Diante disso, como não esquecer aquelas regras chatas sobre se comportar à mesa ou, pior, fazer os deveres antes de se divertir. Quem, em sã consciência, escolheria essa prioridade?
Mas havia o paradigma e os pais estavam presos a eles, sob pena de serem reprovados por seus amigos e por seus próprios pais, observadores ferozes da manutenção de suas próprias regras, herdadas de seus antepassados ainda mais arcaicos e ferozes: “Você tem de fazer como eu fazia, meu filho, senão esse menino não vai dar boa coisa!” E você - que nem de longe tornou-se o que sonhou ser quando criança - responde: "Pois é, estou tentando. Mas ele é impossível. Acho que vou ter de tomar medidas mais drásticas."
A violência contra crianças é exercida de maneiras bastante sutis. A chantagem emocional, por exemplo, é uma constante. As promessas não cumpridas “por algo que a criança fez”, igualmente. O adulto imagina que o sofrimento do desejo não realizado, do sonho negado, do prazer suprimido, fará de cada criança um adulto melhor.
E aí tornamo-nos adultos dizendo: "Ai, que saudades da minha época de criança.” E envelhecemos, vendo aproximar-se o horizonte do Nada que tem além, desesperados pelos anos, meses, dias, momentos perdidos de alegria pueril e gratuita que nos foi roubada, suprimida pela ânsia de um adulto incapaz de perceber o quão triste é querer ser sério e consequente quando, na verdade, o que se consegue com isso é apenas ser violento e intolerante, alimentando um ciclo de tristezas sem fim.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros
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